quarta-feira, março 14, 2007

Rancho de Paus (1.ª parte)

Numa das reuniões preparatórias da sessão solene das celebrações das festas centenárias da diocese de Lamego, que ocorreram em 19 de Setembro de 1976, em S. Martinho de Mouros, alguém atalhou: tem de haver algo no programa que agarre as pessoas. E rematou: temos aqui um artista.

O destinatário da incumbência era o então jovem pároco de Paus, daqui natural, P. Joaquim Correia Duarte, que, naquela memorável tarde de Verão, apresentou o resultado do seu labor artístico, consubstanciado na formação de um rancho, cujas actuações nos intervalos das intervenções de oradores tão notáveis como o Prof. Caetano Pinto ou o Dr. Pinto Carneiro, encantaram os presentes. Um vasto património cultural, como a chula de Paus, o fado de Montemuro, o malhão de Resende e alguns cantares medievais (cramóis e cantigas de imbelar), que hoje podia permanecer no esquecimento ou repousar em livros e pautas musicais, voltou felizmente ao nosso convívio, graças a esta iniciativa e ao empenhamento deste ilustre conterrâneo.

Origem
A tarefa não se apresentava fácil, pois o tempo escasseava. Por sorte, a paróquia de Paus tinha apresentado há alguns anos atrás um grupo de danças e cantares tradicionais numa festa de S. Martinho de Mouros, cujos efeitos no avivar das memórias ainda perduravam. Tal como se fizera então, o P. Joaquim C. Duarte continuou a socorrer-se do contributo e das vivências das pessoas mais idosas, designadamente da Sra. Cristina (das Quintãs), actualmente com 100 anos, que ainda se recordava das letras e músicas como o malhão, a chula de Paus, arrula/arrula e o bendito. Outras letras e músicas foram recolhidas em Córdova e Moumiz. Uma ajuda preciosa adveio da consulta do Cancioneiro de Resende, cujas canções foram recolhidas por Vergílio Pereira e compiladas em livro, editado pela então Junta de Província do Douro Litoral, em 1957.
Após este levantamento, a selecção das pessoas e os ensaios foram perspectivados tendo como objectivo apenas a animação lúdico-cultural da sessão atrás referida. A escolha das vestes seguiu o figurino tradicional: camisas brancas, calças e chapéu pretos e faixas vermelhas para os elementos masculinos; saia preta com espiguilhas às cores, blusa e meias brancas, chinelos pretos e lenço chinês/riscado para os elementos femininos.
Ao contrário do previsto, pois temiam-se alguns apupos, devido a uma antiga rivalidade entre Paus e S. Martinho de Mouros, a actuação foi um êxito. A intervenção dos oradores e do rancho, no adro da igreja matriz, processou-se de forma intercalada, sendo notório que as pessoas nunca arredavam pé aquando da actuação deste. No fim da sessão solene, percorreu a parte central de S. Martinho de Mouros em apoteose, recebendo incentivos para constituir um rancho folclórico representativo do concelho

Voos mais altos
Após este teste, parecia haver condições para a constituição de um grupo com bases sólidas. Foram, assim, iniciados contactos para a recolha de sugestões e troca de experiências. Um dos que se revelou mais proveitoso foi o realizado com os serviços culturais do Governo Civil de Viseu, então muito disponíveis para o apoio à pesquisa da genuína música popular e do folclore. As sugestões foram sempre no sentido de se efectuar um levantamento rigoroso das tradições para que o rancho revestisse características genuinamente populares. Deste contacto nasceu o convite para participar nas festas de S. Mateus no ano seguinte, ou seja em 1977.
A juntar ao trabalho já efectuado, tornava-se necessário recriar os figurantes mais representativos da freguesia e do concelho com os seus trajes e adereços, condizentes o mais possível com os usados no século dezanove. Esta tarefa foi facilitada graças ao saber e à arte da saudosa costureira Sra. Albertina de Assunção Azevedo, das Quintãs. Era também necessário encontrar músicos e tocadores para completar a roquesta, que chegou a integrar dois elementos de S. Martinho de Mouros (Manuel Rui e Manuel da Balbina). Estavam reunidas as condições para moldar o grupo, criar uma identidade, interiorizar músicas e danças e recriar coreografias, através de ensaios semanais, que decorriam aos domingos à tarde, no adro da igreja, sempre muito animados e com muita assistência.
A participação na festa de S. Mateus constituiu outro êxito. De entre outros grupos, sobressaiu o seu carácter genuinamente popular e tradicional.
A batalha travada a seguir consistiu na preparação do processo de entrada na Federação de Folclore Português, que veio a ocorrer em 1980. Era o certificado da conformidade do grupo aos valores das músicas e das danças tradicionais, constituindo uma oportunidade para novos desafios, nomeadamente a facilitação no estabelecimento de permutas e a possibilidade de organizar o seu próprio festival, que tem ocorrido desde 1981.
(Artigo de minha autoria, publicado no Jornal de Resende, em Janeiro último)