quarta-feira, abril 16, 2008

O mineiro de S. Cipriano -Artes e marcas de um homem singular*

Quem se deslocar pelas estradas e caminhos do vale do rio Cabrum é surpreendido por diversas esculturas de índole religiosa e popular (alminhas, cruzeiros e estátuas de santos), que projectam as representações e o mundo multifacetado de um homem onde se entrecruzaram as lides do trabalho das minas, o destino da bruxaria e o impulso da cinzelagem da pedra. Vistas como sinal de provocação por alguns, são expressões de uma religiosidade pessoal e heterodoxa, cujo legado merece ser devidamente preservado. Evocam também as suas crenças e conluio com poderes ocultos.

Introdução
Foi num percurso pelo vale do rio Cabrum, levado a efeito pelo Clube Náutico de Caldas de Aregos, que tomei contacto com a faceta de artista de António Pinto Madureira, mais conhecido por mineiro de S. Cipriano. Posteriormente, pude admirar mais pormenorizadamente algumas das esculturas/obras deste artista, espalhadas por Ovadas, S. Cipriano e S. Romão.
Neste roteiro procurei aprofundar junto das pessoas que conheceram e conviveram com António Pinto Madureira a sua faceta de bruxo e curandeiro.

Poderes e curas
A partir de determinada altura, este homem, nascido em Ancede/Baião em 1897, que veio para S. Cipriano aos vinte e três anos “cortar” uma mina e que por cá casou e ficou, exercendo a profissão de pedreiro e mineiro, começou a revelar dotes de curandeiro. A sua eficácia revelou-se sobretudo nas doenças do foro psíquico, atribuídas normalmente a um espírito ruim, possessão demoníaca e mau olhado, ou seja, a uma entidade desconhecida que se apoderava do indivíduo. Face a esta concepção, só os bruxos ou “curadores tradicionais” estariam habilitados a compreender, explicar e tratar estes problemas e experiências, conseguindo responder com êxito às expectativas pessoais, familiares e comunitárias. Foi a este mister que se entregou “o mineiro de S. Cipriano”.
Tendo em conta as enormes carências, o nível de desenvolvimento da medicina, a falta de médicos e outros recursos e o contexto cultural, as pessoas socorriam-se também dele para o tratamento de maleitas e enfermidades corporais, incluindo cancros. No tratamento de todos estes males, utilizava rezas, benzeduras, massagens, apalpações, pomadas e “remédios” feitos à base de ervas e substâncias várias.

Como se faz um bruxo
A ideia de bruxo anda associada à magia, aos saberes curativos tradicionais, rituais de espiritismo e até charlatanismo psicológico. Contudo, os bruxos das aldeias não podem ser confundidos com astrólogos nem com médiuns videntes que se fazem anunciar como professores karambas e similares. Os seus poderes “extraordinários” vão sendo transmitidos discretamente.
Não se torna bruxo quem quer, mas quem a isso é obrigado. A sua vida parece desenrolar-se sob um signo de um destino inelutável que, por vezes, se manifesta antes mesmo do nascimento, quando “chora no ventre materno”. Este sinal relatado pela respectiva mãe é interpretado como uma predestinação. À medida que vai crescendo, a criança denota uma grande inteligência e sensibilidade. É capaz de sentir os sintomas da
s pessoas doentes que se aproximam. Chegada a adolescência e a juventude, cada vez mais ciente da singularidade das suas experiências, o futuro bruxo procura cada vez mais o isolamento e a solidão. São os problemas dos vivos, mas também os espíritos dos mortos, que lhe aparecem e falam, invadindo o seu espaço e mundo interiores.
A partir de determinada altura, além de falarem com ele, os espíritos entram-lhe no corpo. Depois, manifestam-se crises de possessão, ocorrendo fenómenos de transfiguração desordenada e selvagem na intimidade do lar ou diante de vizinhos. Perante esta situação, os seus familiares ou o próprio pedem a ajuda de um padre ou de um bruxo. Caso a intervenção do primeiro seja ineficaz, avançam para uma consulta a um bruxo que, face à especificidade do caso, escolhe uma de duas vias. Ou “fecha o corpo”, reintegrando o indivíduo na sua vida normal, ou continuará o processo de “abrir o corpo”, aprendendo a controlar e mesmo a utilizar o processo da possessão, como percurso para o futuro exercício de múnus de bruxo. Depois é só esperar pelo episódio fulcral que o confirmará como tal: a primeira intervenção de sucesso reconhecida por outrem como tal. A partir daí, terá de lidar com um dom bifacetado, pois conferir-lhe-á poder e estigmatização social. Uma característica, contudo, o acompanhará: a sua identidade de cristão, o uso e abuso de alguns dos seus rituais e a grande religiosidade.
Ao longo da vida, irá ocorrer o apuramento da arte com o contributo de rezas, mezinhas, “amar
rações” e defumadouros, para fazer frente a males do espírito e do corpo.
Ao bruxo está indissociavelmente ligado um espírito auxiliar, regra geral de uma pessoa falecida, ou então um santo, a quem ele chama “guia”.

Memórias
As pessoas que conheceram António Pinto Madureira caracterizam-no como uma pessoa afável, comunicativa, desprendida de bens materiais e muito sensível ao sofrimento e doenças de outrem. Embora conhecido por mineiro, foi sobretudo como pedreiro que ganhou a vida. A autoria do seu trabalho encontra-se espelhada em inúmeras reconstruções, paredes, pequenas casas e canastros. No decurso das obras nas aldeias mais distantes, como Granja, Rossas e Panchorrinha, aqui pernoitava, só retornando a casa ao fim de semana, onde o esperavam inúmeras pessoas com perda de apetite e emagrecimento, cansaço físico inexplicável, sintomas de “encosto”…
Tendo em conta o seu rigor profissional e a apetência pela arte da pedra, as pessoas mais representativas de várias povoações encomendaram-lhe obras de motivação religiosa, algumas das quais destinadas à reposição de monumentos anteriores, como é o caso dos cruzeiros de Santo António - Panchorrinha e de Santa Eufémia-Mariares.
Quando era informado que alguém se encontrava doente, deixava o que estava a fazer para ir oferecer os seus préstimos que, por vezes, eram rejeitados, pois é difícil ser-se profeta na sua própria terra. Das pessoas que contactei nenhuma assumiu tê-lo consultado, não tendo, pelo contrário, algumas delas qualquer problema em referir que o tinham feito com o célebre Dr. Albininho da Póvoa-Paus, “médico”, seu contemporâneo.
O actual presidente da Junta de Ovadas, Sr. Isidro Pereira, ainda se recorda do Sr. António Madureira deixar o trabalho que andava a fazer para a sua avó para ir tratar de um senhor que apresentava sinais de grande agitação e que veio em desespero de causa à sua procura. Foram os dois para uma casa desabitada, de onde, passados alguns minutos, se começou a ouvir o som estranho de vergastadas. Algum tempo depois, o senhor saiu tranquilamente de casa, não apresentando quaisquer sinais de doença.

Bibliografia
Duarte, Joaquim Correia ( 1996). Resende e a sua História (vol. 2). Resende: C.M.R.
Montenegro, Miguel (1998). O mundo do bruxo e do seu cliente. Conferência proferida na Escola Superior de Enfermagem de Vila Real

Perguntas e Respostas

O mineiro usava o livro de S. Cipriano?
É sabido que, além do livro de S. Cipriano, usava também um livro de receitas e mezinhas, cujos excertos/textos, devido à sua reduzida literacia, eram lidos inicialmente por pessoas de sua confiança. Com o esforço do seu didactismo, a leitura por estranhos tornou-se indispensável.
O livro de S. Cipriano, com receitas mágicas e rezas para os mais diversos problemas, inclui esconjuros para erradicar males de encosto, que têm origem na possessão do espírito de um morto.

Qual a sua relação com a religião e os padres?
Como quase sempre aconteceu no passado com este tipo de situações, as relações com a igreja e os padres nunca foram as melhores. A actividade, as interpretações mágico-religiosas da doença e os rituais demoníacos dos bruxos são incompatíveis com as verdades, competências e o ordenamento da Igreja nestas matérias.
Um bruxo é publicamente uma ovelha fora do redil. O Catecismo da Igreja Católica actual considera o recurso ao demónio, à bruxaria, à feitiçaria, à magia e à adivinhação como “práticas gravemente contrárias à virtude da religião”.

Julgava-se pré-destinado e imbuído de dons extraordinários?
Sim. Por isso, actuava na convicção de que podia ajudar a resolver os problemas e males das pessoas, sem intuitos de as explorar.

Deixou filhos?
Não. Quando adoeceu, foi para casa de um sobrinho, residente em Ancede/Baião, ao qual deixou os seus parcos bens. Veio a falecer em 1974.

*Publicado no Jornal de Resende (Novembro de 2007)