Foi num percurso pelo vale do rio Cabrum, levado a efeito pelo Clube Náutico de Caldas de Aregos, que tomei contacto com a faceta de artista de António Pinto Madureira, mais conhecido por mineiro de S. Cipriano. Posteriormente, pude admirar mais pormenorizadamente algumas das esculturas/obras deste artista, espalhadas por Ovadas, S. Cipriano e S. Romão.
Neste roteiro procurei aprofundar junto das pessoas que conheceram e conviveram com António Pinto Madureira a sua faceta de bruxo e curandeiro.
A partir de determinada altura, este homem, nascido em Ancede/Baião em 1897, que veio para S. Cipriano aos vinte e três anos “cortar” uma mina e que por cá casou e ficou, exercendo a profissão de pedreiro e mineiro, começou a revelar dotes de curandeiro. A sua eficácia revelou-se sobretudo nas doenças do foro psíquico, atribuídas normalmente a um espírito ruim, possessão demoníaca e mau olhado, ou seja, a uma entidade desconhecida que se apoderava do indivíduo. Face a esta concepção, só os bruxos ou “curadores tradicionais” estariam habilitados a compreender, explicar e tratar estes problemas e experiências, conseguindo responder com êxito às expectativas pessoais, familiares e comunitárias. Foi a este mister que se entregou “o mineiro de S. Cipriano”.
Tendo em conta as enormes carências, o nível de desenvolvimento da medicina, a falta de médicos e outros recursos e o contexto cultural, as pessoas socorriam-se também dele para o tratamento de maleitas e enfermidades corporais, incluindo cancros. No tratamento de todos estes males, utilizava rezas, benzeduras, massagens, apalpações, pomadas e “remédios” feitos à base de ervas e substâncias várias.
A ideia de bruxo anda associada à magia, aos saberes curativos tradicionais, rituais de espiritismo e até charlatanismo psicológico. Contudo, os bruxos das aldeias não podem ser confundidos com astrólogos nem com médiuns videntes que se fazem anunciar como professores karambas e similares. Os seus poderes “extraordinários” vão sendo transmitidos discretamente.
Não se torna bruxo quem quer, mas quem a isso é obrigado. A sua vida parece desenrolar-se sob um signo de um destino inelutável que, por vezes, se manifesta antes mesmo do nascimento, quando “chora no ventre materno”. Este sinal relatado pela respectiva mãe é interpretado como uma predestinação. À medida que vai crescendo, a criança denota uma grande inteligência e sensibilidade. É capaz de sentir os sintomas das pessoas doentes que se aproximam. Chegada a adolescência e a juventude, cada vez mais ciente da singularidade das suas experiências, o futuro bruxo procura cada vez mais o isolamento e a solidão. São os problemas dos vivos, mas também os espíritos dos mortos, que lhe aparecem e falam, invadindo o seu espaço e mundo interiores.
A partir de determinada altura, além de falarem com ele, os espíritos entram-lhe no corpo. Depois, manifestam-se crises de possessão, ocorrendo fenómenos de transfiguração desordenada e selvagem na intimidade do lar ou diante de vizinhos. Perante esta situação, os seus familiares ou o próprio pedem a ajuda de um padre ou de um bruxo. Caso a intervenção do primeiro seja ineficaz, avançam para uma consulta a um bruxo que, face à especificidade do caso, escolhe uma de duas vias. Ou “fecha o corpo”, reintegrando o indivíduo na sua vida normal, ou continuará o processo de “abrir o corpo”, aprendendo a controlar e mesmo a utilizar o processo da possessão, como percurso para o futuro exercício de múnus de bruxo. Depois é só esperar pelo episódio fulcral que o confirmará como tal: a primeira intervenção de sucesso reconhecida por outrem como tal. A partir daí, terá de lidar com um dom bifacetado, pois conferir-lhe-á poder e estigmatização social. Uma característica, contudo, o acompanhará: a sua identidade de cristão, o uso e abuso de alguns dos seus rituais e a grande religiosidade.
Ao longo da vida, irá ocorrer o apuramento da arte com o contributo de rezas, mezinhas, “amarrações” e defumadouros, para fazer frente a males do espírito e do corpo.
Ao bruxo está indissociavelmente ligado um espírito auxiliar, regra geral de uma pessoa falecida, ou então um santo, a quem ele chama “guia”.
As pessoas que conheceram António Pinto Madureira caracterizam-no como uma pessoa afável, comunicativa, desprendida de bens materiais e muito sensível ao sofrimento e doenças de outrem. Embora conhecido por mineiro, foi sobretudo como pedreiro que ganhou a vida. A autoria do seu trabalho encontra-se espelhada em inúmeras reconstruções, paredes, pequenas casas e canastros. No decurso das obras nas aldeias mais distantes, como Granja, Rossas e Panchorrinha, aqui pernoitava, só retornando a casa ao fim de semana, onde o esperavam inúmeras pessoas com perda de apetite e emagrecimento, cansaço físico inexplicável, sintomas de “encosto”…
Tendo em conta o seu rigor profissional e a apetência pela arte da pedra, as pessoas mais representativas de várias povoações encomendaram-lhe obras de motivação religiosa, algumas das quais destinadas à reposição de monumentos anteriores, como é o caso dos cruzeiros de Santo António - Panchorrinha e de Santa Eufémia-Mariares.
Quando era informado que alguém se encontrava doente, deixava o que estava a fazer para ir oferecer os seus préstimos que, por vezes, eram rejeitados, pois é difícil ser-se profeta na sua própria terra. Das pessoas que contactei nenhuma assumiu tê-lo consultado, não tendo, pelo contrário, algumas delas qualquer problema em referir que o tinham feito com o célebre Dr. Albininho da Póvoa-Paus, “médico”, seu contemporâneo.
O actual presidente da Junta de Ovadas, Sr. Isidro Pereira, ainda se recorda do Sr. António Madureira deixar o trabalho que andava a fazer para a sua avó para ir tratar de um senhor que apresentava sinais de grande agitação e que veio em desespero de causa à sua procura. Foram os dois para uma casa desabitada, de onde, passados alguns minutos, se começou a ouvir o som estranho de vergastadas. Algum tempo depois, o senhor saiu tranquilamente de casa, não apresentando quaisquer sinais de doença.
Duarte, Joaquim Correia ( 1996). Resende e a sua História (vol. 2). Resende: C.M.R.
Montenegro, Miguel (1998). O mundo do bruxo e do seu cliente. Conferência proferida na Escola Superior de Enfermagem de Vila Real
Perguntas e Respostas
O mineiro usava o livro de S. Cipriano?
É sabido que, além do livro de S. Cipriano, usava também um livro de receitas e mezinhas, cujos excertos/textos, devido à sua reduzida literacia, eram lidos inicialmente por pessoas de sua confiança. Com o esforço do seu didactismo, a leitura por estranhos tornou-se indispensável.
O livro de S. Cipriano, com receitas mágicas e rezas para os mais diversos problemas, inclui esconjuros para erradicar males de encosto, que têm origem na possessão do espírito de um morto.
Como quase sempre aconteceu no passado com este tipo de situações, as relações com a igreja e os padres nunca foram as melhores. A actividade, as interpretações mágico-religiosas da doença e os rituais demoníacos dos bruxos são incompatíveis com as verdades, competências e o ordenamento da Igreja nestas matérias.
Um bruxo é publicamente uma ovelha fora do redil. O Catecismo da Igreja Católica actual considera o recurso ao demónio, à bruxaria, à feitiçaria, à magia e à adivinhação como “práticas gravemente contrárias à virtude da religião”.
Sim. Por isso, actuava na convicção de que podia ajudar a resolver os problemas e males das pessoas, sem intuitos de as explorar.
Não. Quando adoeceu, foi para casa de um sobrinho, residente em Ancede/Baião, ao qual deixou os seus parcos bens. Veio a falecer em 1974.
*Publicado no Jornal de Resende (Novembro de 2007)