sexta-feira, dezembro 04, 2015

(Ex)citações de fim de semana*

Lisboa, 26 de Julho de 1944

"Exmo. Senhor Presidente do Conselho
Excelência

A bondade e indulgência com que V. Exa. um dia me acolheu, por ocasião de um caso complicado no Ministério das Colónias, e a gentileza e benevolência que V. Exa. teve ao ler e agradecer pessoalmente um livro "Cristo, sinal de contradição" - quando eu me contentava plenamente só com a honra e o prazer de o ter oferecido, - deram-me alento para vir, nesta altura, implorar de novo uma parcela de tão grande generosidade.
É possível que tenha chegado até V. Exa. o eco de uma prova de doutoramento que fiz na Faculdade de Letras de Lisboa, depois de ter exercido, durante cinco anos, o múnus de professor extraordinário contratado na mesma Faculdade, com renovação anual do contrato.
Segundo uma informação do Conselho da Faculdade, dirigida, depois das provas a Sua Excelência o Ministro da Educaçãoo Nacional, eu "estava sendo examinado perante uma geração de mancebos que, como mestre, tinha guiado com prestígio". Guardo na consciência esta frase como prémio e consagração da minha longa acção de professor.
Contudo, embora ficasse aprovado nas provas de Língua e Literatura grega e latina, por nove bolas brancas contra uma preta, o Júri, reunido durante quatro horas para ouvir ler integralmente um trabalho escrito pelo Professor arguente, sem eu estar presente para me defender das arguições, resolveu reprovar-me, após aquele ataque secreto à minha dissertação, por seis bolas pretas contra quatro branças, como se diz na citada informação para o Senhor Ministro da Educação Nacional.
Por tal motivo vai agora o Conselho da Faculdade rescindir o meu contrato de professor extraordinário, e, em todo o caso, não o renovará, com é das suas atribuições, quando ele expirar no mês de Dezembro.
Este facto, que é tão simples tem, não obstante, para mim, um significado terrível; quer dizer, na sua simplicidade, que a minha vida, que já atingiu cinquenta anos e fora encaminhada e orientada, até pelo próprio Conselho da Faculdade, para o ensino superior, sofre um golpe tremendo e trágico. Vejo que, depois de quase trinta anos devotados com ardor e entusiasmo ao ensino, me encontro sem trabalho e sem ocupação, apesar de sentir em mim capacidades de trabalho, boa vontade e, talvez, alguma competência.
Por tudo isto, Senhor Presidente do Conselho venho acolher-me à justiça e protecção de V. Exa. oferendo-me para trabalhar e colaborar em qualquer actividade em que a generosidade de V. Exa. julgue por bem empregar a minha acção. Lembrei-me que no Secretariado de Propaganda e Cultura Popular - especialmente na secção da cultura, - talvez se pudesse ocupar o meu desejo de bem servir, cooperando nessse sector da vida portuguesa.
Perdoe V. Exa. Senhor Presidente dio Conselho o atrevimento do meu apelo; mas como V. Exa. muito bem sabe e já o aforismo latino o dizia necessitas caret lege
Com este sentimento e com profundo reconhecimento, tenho a honra de subscrever-me de V. Exa. mto. admirador e muito grato.
Raúl Machado
*Carta de Raúl Machado a Salazar (transcrita das "Cartas Singulares a Salazar", selecçao e notas de Fernando de Castro Brandão, edição de autor)
Nota: Raúl Machado (17.5.1894 - 25.3.1962 - Jesuíta, doutorou-se em Filosofia na Universidade de Granada e em Teologia por Insbruck. Licenciou-se ainda em Clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa com 18 valores, onde foi docente entre 1939 e 1944. Não voltará a leccionar em universidades portuguesas.