quinta-feira, dezembro 18, 2014

Guilherme d'Oliveira Martins analisa o livro "DEUS AINDA TEM FUTURO?" *

Anselmo Borges coordenou a obra «Deus ainda tem Futuro?» (Gradiva, 2014) que constitui uma panóplia de reflexões, representando uma pluralidade de perspetivas, de extraordinária atualidade e pertinência.

UMA COMPREENSÃO PLURAL DOS LIMITES
Estamos perante as intervenções realizadas no Colóquio Internacional realizado no Seminário da Boa Nova, Valadares, Gaia, em Outubro de 2013, subordinado ao tema que precisamente intitula a presente obra. Javier Monserrat e José Ignacio Gómez Faus também colaboram, ainda que não tenham participado no simpósio. Como disse o pensador Paul Clavier, «a existência de Deus é um assunto demasiado sério para ser confiado exclusivamente aos crentes». Daí que tenhamos neste diálogo intenso a presença de crentes e não crentes, e sobretudo uma sã atitude crítica, sempre. Os assuntos são múltiplos e todos apaixonantes – desde a situação religiosa no mundo atual às questões relacionadas com a genética, as neurociências, passando pela criação e pela natureza, pela relação entre a modernidade e o fenómeno religioso, a autonomia da ética em face da religião, Deus no Oriente e no Ocidente, o rosto feminino de Deus, a fé, a ciência e a razão, o silêncio de Deus e a experiência mística… No mote lançado para o desenvolvimento do tema, o Professor Anselmo Borges lembra uma pergunta de Karl Rahner - «O que aconteceria, se a simples palavra Deus deixasse de existir?». A resposta é significativa: «A morte absoluta da palavra Deus, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria um sinal, já não ouvido por ninguém, de que o homem morrera». No fundo, a interrogação do título obriga a acrescentar que o futuro a que se faz referência diz respeito à humanidade toda. Não por acaso, o coordenador da obra lembra Vaclav Havel, pouco antes de morrer, a afirmar que uma civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade, pode estar a caminhar para a catástrofe. E não se confunda esta posição com qualquer simplificação intelectual, uma vez que o que está em causa é o perigo do vazio de ideias e valores e o risco da incompreensão dos limites do conhecimento. E se se fala de catástrofe, a mesma tem a ver com a eventual emergência da irracionalidade e do sectarismo.

O INTANGÍVEL E O INEXPLICÁVEL
Carlos Fiolhais recorda a resposta de Einstein à pergunta se se considerava uma pessoa religiosa. O cientista respondeu, surpreendendo os interlocutores: «Sim, sou, pode dizer isso. Tente penetrar, com os seus recursos limitados nos segredos da Natureza, e descobrirá que, por detrás de todas as concatenações discerníveis, resta algo de subtil, intangível e inexplicável. A veneração dessa força, que está além de tudo o que podemos compreender, é a minha religião. Nessa medida, sou realmente religioso». Esta afirmação sintetiza a importância do tema que reúne as diferentes respostas contidas nesta obra. Afinal, o fenómeno religioso ultrapassa em muito as diferentes confissões bem como as opções individuais nessa matéria. A liberdade de consciência e a inteligência humana dão um sentido especial ao diálogo entre razão e fé, e a compreensão dos limites do conhecimento constitui um desafio muito fecundo para usar o sentido crítico e para ir mais além do que parece estar ao nosso alcance. Num texto muito rico, Eduardo Lourenço dá, no pórtico da obra, uma visão panorâmica da atitude da cultura contemporânea perante a pergunta e o tema que o livro postula. Diz-nos: «Do silêncio de Deus que nós criámos não virá nenhum socorro. É diante dele como Ausência suposta e Presença agostinianamente mais interior a nós mesmos do que nós que somos convocados para fazer prova de vida. E de vida eterna. A única que nos ajuda a suportar todas as ausências dos que nesta vida nos foram, à maneira de Dante, reflexos de uma Luz mais clara que a do sol e das estrelas». Após a não-comunicação do determinismo industrial, chegamos à hipercomunicação global, com um resultado semelhante de autodesertificação, que torna a Ausência um défice de esperança e de dignidade.

SER HUMANO E SER RAZOÁVEL
A leitura dos textos que constituem a obra permite-nos ir ao encontro da espiritualidade essencial que alimenta o mundo contemporâneo, para responder ao vazio de valores, que é o pano de fundo da grave crise financeira que se abate sobre nós, pondo em xeque a justiça e o respeito mútuo. Afinal, se um ser finito como a pessoa humana pergunta pelo infinito, isso significa que tem algo de infinito nela própria, assumindo a necessidade de perguntar até ao infinito e pelo infinito – como disse Anselmo Borges na apresentação do livro no Centro Nacional de Cultura. Jean-Paul Williaime refere as condições socioculturais da religião na ultramodernidade contemporânea, concluindo que Deus ainda não disse a última palavra – num tempo em que o ideal humanista e solidário se vê ameaçado pela idolatria do mercado e pela cegueira da técnica. Carlos Fiolhais salienta a necessidade de nos interrogarmos incessantemente, através da ciência. Miguel Castelo-Branco fala-nos de neurociência e espiritualidade, pondo a tónica na exigência da compreensão da vida cerebral, explorando a ciência a fenomenologia da espiritualidade no campo epistemológico. Leandro Sequeira questiona a alternativa Natureza ou Criação, perante os sinais do novo Ateísmo, de Dawkings a Hawking, culminando na proposta de uma ponte entre o naturalismo ateu e o criacionismo fixista, em que Deus é evolucionador e evolutivo (como em Teilhard de Chardin), concluindo que, afinal, os cristãos também não creem no Deus que muitos ateus negam… Javier Monserrat, que fez uma exposição fascinante no CNC, equacionou a experiência moderna do silêncio de Deus, rumo a um Novo Concílio. O teocentrismo e o teocratismo geraram resistências, do ateísmo ao laicismo, o que obriga à passagem de uma cultura dogmática para uma cultura de incerteza E como distinguir a verdadeira natureza da religião natural (o universal religioso) e o cristianismo como religião universal (o universal cristão)? Já Paul Valadier refere a exceção humana na relação com Deus. Como usar a razão em vez da violência? Como seremos diferentes respeitando a dignidade? Juan Masiá, bem conhecido nosso, do tempo em que preparámos a viagem ao Japão, diz-nos que no diálogo fecundo o Oriente «o nome futuro da religião e da espiritualidade será a profundidade humana», escutando o Dharma e respirando o Espírito. Isabel Gómez-Acebo aponta-nos o «rosto feminino de Deus», enquanto Anselmo Borges lança a pergunta: «E se tivéssemos sido ensinados a dizer “Mãe-Nossa que estais nos Céus?”». O Salmo 27 inspira o que Heinrich Böll designava com «teologia da ternura» - «Ainda que meu Pai e minha mãe me abandonem, o Senhor há de acolher-me». Como escreveu Rilke: «O trabalho dos olhos ficou feito, ide e fazei o trabalho do coração». Há um caminho a fazer para que a mulher encontre o seu lugar na Igreja e na vida. José Arregi refere o Amor universal de Deus para além e para lá de todo o dualismo e monismo. Diego Gracia põe-nos perante a secularização da ética. Andrés Torres Queiruga põe a tónica no Deus que cria por amor, com todas as consequências. E José Ignacio Gonzalez Faus coloca-nos diante da pluralidade de místicas, de um modo pedagógico, mas para nos enriquecermos sem a ilusão das caricaturas… Para Anselmo Borges, «a fé não é racional, no sentido de ser uma conclusão científica, à maneira da matemática ou das ciências experimentais. Mas, para ser humana, tem de ser razoável, apresentar razões, ser credível, não agredir a razão. (…) Há hoje forte busca de espiritualidade. O que está principalmente em crise é a religião institucional» (DN. 2.12.14). Temas de sério pensamento.

Guilherme d'Oliveira Martins
 *Retirado daqui