Integrei o grupo de 35 pessoas que, no passado fim de semana, se deslocou a Córdoba (em visita mais demorada) e a Sevilha (mais de passagem), no âmbito de uma iniciativa da Rede Antigos Estudantes da Universidade de Coimbra, em parceria com a Faculdade de Letras da UC. Córdoba deixou um legado cultural e religioso único pela convivência das três religiões mais influentes do mundo (as chamadas religiões do Livro): judaísmo, cristianismo e islamismo.
Em matéria de história, Córdoba é uma enciclopédia a céu aberto. O clima ameno tornaram-na numa cidade refúgio no tempo do domínio romano. Inúmeros senadores aposentados, intelectuais e artistas sentiram a sua atracção. Não foi por acaso que o filósofo Séneca e o poeta Lucano são ilustres filhos desta terra.
O cristianismo cedo substituiu as religiões locais e a adoração ao imperador, unificando na identidade religiosa gentes e costumes. Contudo, em Julho de 711, chegava à baía de Algeciras uma frota muçulmana de 10.000 homens. Rapidamente derrotaram as tropas do rei visigodo Rodrigo e conquistaram Córdoba, Granada e Toledo. Em 720, já se tinham apoderado de Catalunha e de Septimania (Languedoc). De seguida, passaram os Pirenéus e chegaram à Gália, governada pelos Francos. Tudo isto se passou sem a resistência dos reinos visigodos, sem a oposição popular e, nalguns casos, até pactuando com os invasores (cuja conivência se explica, entre outros motivos, como i) uma oportunidade de libertação do despotismo dos reis cristãos, ii) pelos benefícios em impostos para os proprietários convertidos ao islão e III) pelas vantagens para os servos e escravos…). Só a Cantábria e Astúrias ofereceram uma forte resistência. O Pais Basco e Navarra, que tinham resistido aos visigodos, mantiveram a independência. Por desinteligências familiares no seio do primeiro império islâmico, o príncipe Abd al-Rahman I fundou no ano de 756 o emirato de Córdoba, que se tornou politicamente independente da autoridade dos califas abássidas de Damasco, e tomou o título de “emir dos crentes” para manter a ficção de uma só liderança espiritual, agora transferida para Córdoba. Em 929, Abd al-Rahman III constituiu o califado de Córdoba, tendo sido a época do máximo esplendor em todos os campos em toda a al-Andaluz (assim designada a região da península ibérica sob domínio muçulmano) . Córdoba foi comparada em grandeza a Bagdad dos abássidas e com Constantinopla do Império bizantino. Depois veio a desagregação e a queda. Fernando III (o Santo) conquistou Córdoba em 1236. Málaga caiu em poder dos cristãos em 1487. Por último, foi a vez de o reino nazarí de Granada ser tomado em 1492. Em 1501, foram expulsos da Península Ibérica os muçulmanos e os judeus.
Esta última comunidade (a judaica) teve muita influência e gozou de grande prosperidade durante a vigência do califado, ficando a judiaria próxima da mesquita. A respectiva sinagoga é a única que ficou incólume em toda a península ibérica. A propósito, um dos maiores pensadores da história do judaísmo é Maimónides, nascido em Córdoba.
A mesquita e catedral de Córdoba é um monumento fascinante. Rivalizou com a mesquita de Damasco, em que se inspirou, pela sua beleza e grandiosidade. “Por milagre” não foi arrasada. Não esperava tanto. Por isso, fiquei deslumbrado.
Anselmo Borges fez o enquadramento científico do legado e do património de Córdoba. Este apontamento é tributário da sua palestra (“711-2011: 1300 anos depois”) e das explicações que foi fornecendo ao longo da viagem. Começou por caracterizar as três religiões do Livro. Chamou a atenção para o facto de Israel estar centrado na terra, na terra prometida; o cristianismo na pessoa (Jesus Cristo), sendo por vocação universalista, constituindo, pois, um perigo para o império romano; e o islamismo ter desde a origem uma componente político-religiosa e guerreira, pois Maomé foi um reformador, um estratega militar e um líder político. Fez uma síntese do percurso histórico e das vicissitudes das várias dinastias e impérios por que passou o domínio islâmico no Médio Oriente e na Europa e das suas confluências com o cristianismo. Destacou o facto de que, com a queda de Granada em 1492, culminando a derrota no ocidente, os otomanos terem avançado para os Balcãs, para Leste, chegando às portas de Viena em 1683. Explicou o contraste entre o florescimento cultural e das novas ideias do Iluminismo no ocidente e o seu repúdio pelos ulemas (juristas e teólogos do islão) e, mais concretamente, a influência nefasta de Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1772), que defendeu uma leitura e aplicação fundamentalistas do Corão e da Sunna, o que explica o declínio do islão. Entretanto, a Europa foi ganhando mais influência, ocupando, durante o séc.XIX, territórios islâmicos no Norte de África e Médio Oriente: Argélia, Marrocos, Egipto, Palestina, Síria, Iraque, Península Arábica…Explicou a origem e as consequências da I Guerra Mundial no que se refere ao mundo islâmico, os efeitos perversos da divisão da Palestina e as consequências da imigração na Europa (“a explosão demográfica entre os muçulmanos é uma bomba atómica ao retardador”, referiu). Falou ainda dos pressupostos e das vantagens do diálogo inter-religioso de que o legado de Córdoba deverá ser inspirador.
Embora possa ser considerado suspeito, todos foram unânimes em considerar que esta visita a Córdoba (e à Catedral e Museu de Sevilha) ganhou uma outra perspectiva e foi muito enriquecida com o contributo de Anselmo Borges.