Em virtude de não se encontrar disponível no site do DN , como é habitual, o artigo de Anselmo Borges, referente ao último domingo (28.05.2006), fazemos abaixo a reprodução do mesmo.
A Igreja católica e o protocolo de Estado
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo natural que se estabeleça um protocolo de Estado. Em Portugal, está em debate um projecto de lei sobre a matéria, no qual a Igreja católica e as outras confissões religiosas deixam de ter lugar no protocolo.
É assim que há muito devia ser. De facto, a que título é que as autoridades religiosas haveriam de surgir na lista de precedências no protocolo, concretamente num Estado regido pelo princípio da não confessionalidade, portanto, da separação da(s) Igreja(s) e do Estado?
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi programaticamente declarado por Jesus Cristo. Esta separação do político e do religioso não tinha sentido na Grécia, que não separava o cívico e o cultual, nem para o judaísmo, que unificava nação e religião. Como escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual religioso é cívico”. Para as três culturas que estão na base da nossa, alguém que estivesse fora da religião estava fora da Cidade.
Contra o preceito de Cristo que delimitou campos de poder, Constantino, apesar da sua “conversão” ao cristianismo, não esqueceu a divinização imperial e intrometeu-se nas questões da Igreja, convocando concílios, condicionando ou mesmo determinando as suas decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria das duas espadas, segundo a qual o Papa detém o poder espiritual e temporal, mas, se exerce o primeiro directamente, delega o segundo nos príncipes, que o exercem em representação do Papa. Para se defenderem dos Papas, os monarcas reivindicaram o direito divino dos reis. Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda a autoridade estabelecida.
A modernidade impôs a secularização, pondo fim a equívocos próprios da Cristandade e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja completamente de acordo com autores que sustentam que a secularização é um fenómeno produzido pela fé cristã, é necessário afirmar que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido da autonomia das realidades terrestres e concretamente da separação da Igreja e do Estado, tem raízes bíblicas.
O monoteísmo desdivinizou a política e os detentores do poder político. O profeta Ezequiel advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva sobre Deus e César. Por isso, os cristãos opuseram-se frontalmente à divinização do imperador, proclamando que “só Deus é o Senhor” e recebendo em troca a acusação de ateísmo.
Em ordem à dessacralização da política e à consequente separação da Igreja e do Estado, foram decisivas as guerras de religião na Europa. De facto, só mediante essa separação, que significava a neutralidade religiosa do Estado, era possível a garantia da liberdade religiosa de todos os cidadãos sem discriminação. Com a desconfessionalização do Estado, os cidadãos tornaram-se livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma.
É, porém, importante perceber que essa exigência não deriva apenas da necessidade do estabelecimento da paz política e civil, mas da natureza do cristianismo. A própria fé impõe essa separação. De facto, sem ela, espreita constantemente o perigo de idolatria, isto é, de confusão ou até de identificação entre Deus e a política.
Um Estado confessional põe em causa a transcendência divina. Por outro lado, acaba por impor politicamente o que só pode ser objecto de opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as pessoas podem livremente escolher o cristianismo. Só homens e mulheres verdadeiramente livres podem aderir à fé religiosa e a Deus.
Jesus recusou a tentação de ser um Messias político, embora tenha sido condenado à morte como blasfemo e subversivo social e político, pois a sua mensagem, que não se confunde com a política, tem consequências sócio-políticas. E é aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não pode fazer política partidária. Mas isso não significa que deva ou possa remeter-se para a tranquilidade beata das sacristias. O seu interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma intervenção pública na denúncia das injustiças e na defesa e promoção da dignidade humana toda.
A Igreja não precisa nem quer privilégios, pois apenas pede para si o que exige para todos: liberdade. Antes de mais, liberdade para defender os mais desfavorecidos, os velhos, os reformados pobres, sem esquecer que 85% dos pensionistas recebem apenas até 374 euros. Aliás, de um modo ou outro, a factura das precedências no protocolo do Estado, do “empréstimo” de aviões presidenciais para a viagem de hierarcas e dos privilégios em geral acabaria sempre por chegar, tolhendo-lhe a independência crítica.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo natural que se estabeleça um protocolo de Estado. Em Portugal, está em debate um projecto de lei sobre a matéria, no qual a Igreja católica e as outras confissões religiosas deixam de ter lugar no protocolo.
É assim que há muito devia ser. De facto, a que título é que as autoridades religiosas haveriam de surgir na lista de precedências no protocolo, concretamente num Estado regido pelo princípio da não confessionalidade, portanto, da separação da(s) Igreja(s) e do Estado?
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi programaticamente declarado por Jesus Cristo. Esta separação do político e do religioso não tinha sentido na Grécia, que não separava o cívico e o cultual, nem para o judaísmo, que unificava nação e religião. Como escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual religioso é cívico”. Para as três culturas que estão na base da nossa, alguém que estivesse fora da religião estava fora da Cidade.
Contra o preceito de Cristo que delimitou campos de poder, Constantino, apesar da sua “conversão” ao cristianismo, não esqueceu a divinização imperial e intrometeu-se nas questões da Igreja, convocando concílios, condicionando ou mesmo determinando as suas decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria das duas espadas, segundo a qual o Papa detém o poder espiritual e temporal, mas, se exerce o primeiro directamente, delega o segundo nos príncipes, que o exercem em representação do Papa. Para se defenderem dos Papas, os monarcas reivindicaram o direito divino dos reis. Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda a autoridade estabelecida.
A modernidade impôs a secularização, pondo fim a equívocos próprios da Cristandade e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja completamente de acordo com autores que sustentam que a secularização é um fenómeno produzido pela fé cristã, é necessário afirmar que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido da autonomia das realidades terrestres e concretamente da separação da Igreja e do Estado, tem raízes bíblicas.
O monoteísmo desdivinizou a política e os detentores do poder político. O profeta Ezequiel advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva sobre Deus e César. Por isso, os cristãos opuseram-se frontalmente à divinização do imperador, proclamando que “só Deus é o Senhor” e recebendo em troca a acusação de ateísmo.
Em ordem à dessacralização da política e à consequente separação da Igreja e do Estado, foram decisivas as guerras de religião na Europa. De facto, só mediante essa separação, que significava a neutralidade religiosa do Estado, era possível a garantia da liberdade religiosa de todos os cidadãos sem discriminação. Com a desconfessionalização do Estado, os cidadãos tornaram-se livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma.
É, porém, importante perceber que essa exigência não deriva apenas da necessidade do estabelecimento da paz política e civil, mas da natureza do cristianismo. A própria fé impõe essa separação. De facto, sem ela, espreita constantemente o perigo de idolatria, isto é, de confusão ou até de identificação entre Deus e a política.
Um Estado confessional põe em causa a transcendência divina. Por outro lado, acaba por impor politicamente o que só pode ser objecto de opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as pessoas podem livremente escolher o cristianismo. Só homens e mulheres verdadeiramente livres podem aderir à fé religiosa e a Deus.
Jesus recusou a tentação de ser um Messias político, embora tenha sido condenado à morte como blasfemo e subversivo social e político, pois a sua mensagem, que não se confunde com a política, tem consequências sócio-políticas. E é aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não pode fazer política partidária. Mas isso não significa que deva ou possa remeter-se para a tranquilidade beata das sacristias. O seu interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma intervenção pública na denúncia das injustiças e na defesa e promoção da dignidade humana toda.
A Igreja não precisa nem quer privilégios, pois apenas pede para si o que exige para todos: liberdade. Antes de mais, liberdade para defender os mais desfavorecidos, os velhos, os reformados pobres, sem esquecer que 85% dos pensionistas recebem apenas até 374 euros. Aliás, de um modo ou outro, a factura das precedências no protocolo do Estado, do “empréstimo” de aviões presidenciais para a viagem de hierarcas e dos privilégios em geral acabaria sempre por chegar, tolhendo-lhe a independência crítica.